Agência FAPESP - O uso de animais em laboratório para pesquisas é uma realidade e, para a comunidade científica, uma necessidade. Mas o Brasil continua sem normas específicas que estabeleçam limites éticos para a experimentação animal.
Um abaixo-assinado lançado na semana passada pela Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE) pede urgência na regulamentação de projeto de lei sobre o assunto que tramita há 12 anos no Congresso Nacional sem ser votado.
"A ausência de normas prejudica tanto os animais como a ciência. Hoje, não há qualquer parâmetro nacional para atribuir responsabilidades administrativas, civis e penais na criação de animais para uso em experimentos científicos. A lei deixaria claro o que pode ou não pode ser feito", disse Luiz Eugênio Mello, presidente da FeSBE, à Agência FAPESP.
Atualmente, os parâmetros para a prática são estabelecidos pelas comissões de ética, que, segundo Mello, existem em praticamente todas as principais universidades e institutos de pesquisa.
"As comissões são muito importantes, mas não suficientes. Sem uma lei nacional, não há meios para responsabilizar quem praticar maus-tratos, o que é algo totalmente inaceitável. Por outro lado, alguma Assembléia Legislativa pode vir a proibir a experimentação em um estado, o que seria um desastre", disse o também professor titular e pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Marcelo Morales, presidente da Sociedade Brasileira de Biofísica e professor do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que o estado do Rio de Janeiro esteve na iminência de aprovar uma lei de banimento da experimentação animal.
"O projeto, de um deputado estadual ligado aos movimentos de defesa dos animais, foi vetado pelo governador graças à pressão da comunidade científica. Uma lei nacional inibiria esse perigo", disse Morales, que é presidente da comissão de ética da UFRJ.
Segundo o professor, uma lei do tipo da vetada no Rio de Janeiro teria conseqüências incalculáveis. "Dou só um exemplo para dar idéia do estrago: a Fundação Oswaldo Cruz teria que parar toda sua produção de vacinas, para o país e para o exterior", disse.
Intimação e bom senso
Para Morales, a ausência de base legal gera uma situação de incerteza que causa constrangimento a pesquisadores. "Mesmo fazendo experimentos com protocolos aprovados na comissão de ética da UFRJ, Leopoldo de Meis, um dos mais respeitados cientistas do Brasil, por exemplo, foi acusado de maus-tratos a animais e acabou intimado a depor na delegacia", contou.
De Meis, que é professor do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, conta que a denúncia teve base em fotos de um experimento feitas, em dezembro de 2006, por uma ativista que entrou no laboratório com a ajuda de um estagiário.
"A jovem tirou fotos de uma geladeira do laboratório, com o celular. Ela reclamou que estaríamos torturando os animais, expondo-os a um frio de quatro graus", disse o professor. "Expliquei que a maior parte dos coelhos do mundo vive naturalmente nessa temperatura, mas ela fez uma denúncia e fui intimado. O delegado ficou visivelmente constrangido, porque a acusação evidentemente não fazia sentido, mas não havia lei que me respaldasse. Felizmente, prevaleceu o bom senso e o caso não deu em nada."
Segundo Morales, o projeto de lei 1.153, de 1995, para o qual a FeSBE pede regulamentação, restringe o uso de animais em laboratórios, mas dá respaldo legal a quem os utiliza dentro das normas.
"A legislação racionaliza a prática. Ela restringe o número de animais, cria suspensões, advertências, multas e até suspensão definitiva do uso de animais em casos de maus-tratos", disse.
Além disso, de acordo com Morales, a lei estabelece a aplicação de analgésicos que aliviem o desconforto das cobaias durante o procedimento e normatiza com precisão o que deve ser feito para proteger os animais, estabelecendo critérios para acondicionamento em biotérios adequados, para evitar estresse e para estimular os métodos alternativos.
"A falta de lei acirra a polarização da questão. Muitas entidades tentam colocar a discussão em uma perspectiva de quem é a favor ou contra o uso de animais, o que é um equívoco. Nós somos contra o uso sempre que possível, mas temos que colocar a saúde humana e o avanço da ciência em primeiro plano e reconhecer que na maioria dos casos o uso é absolutamente indispensável", destacou.
Princípio da razoabilidade
Luiz Eugênio Mello ressalta que o projeto de lei 1.153 foi resultado de discussões entre a comunidade científica, sociedades protetoras dos animais e com a sociedade civil em geral. "Não há unanimidade em relação a 100% das normas estabelecidas pelo projeto, mas ele segue o princípio da razoabilidade, uma vez que foi fruto de uma ampla discussão que permite harmonizar as diferentes posturas", afirmou.
Mello aponta que a demora para a votação do projeto de lei reflete a pouca importância que a sociedade - e conseqüentemente o Congresso - dá à questão. "Essa discussão ainda é vista como secundária, mas trata-se de um item básico para o desenvolvimento científico e tecnológico do país."
Países como Inglaterra, França, Estados Unidos e Alemanha têm normas específicas para o uso de animais de experimentação. Segundo o presidente da FeSBE, a legislação funcionaria como um selo de qualidade internacional para a produção científica brasileira, garantindo credibilidade à pesquisa nacional. "Qualquer trabalho com experimentação animal precisa seguir padrões éticos internacionais para ser publicado em revistas de boa circulação", disse.
Mello lembra que o prêmio Nobel de Medicina deste ano foi concedido aos cientistas Mario Capecchi, Oliver Smithies e Martin J. Evans, pela criação de uma técnica que permite simular em camundongos algumas doenças, de modo a identificar o efeito de certos genes sobre a saúde humana.
Por Fábio de Castro
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